Friday, October 26, 2018

Física - Parte IV

Augusto atravessou a rua Sagarana e se postou em frente ao número 57. Ao lado de um poste, alguém deixara um saco de lixo para ser recolhido naquela noite. Fios de alta tensão dividiam o cimo como se o céu fossem céus de um único céu, periferia do mundo. Entre o desejo hiperselênico de imagens perfeitas e o chorume acre da limpeza urbana, a calçada de cimento ecoava, um após o outro, os passos de Augusto. Os sons se entrelaçavam em ritmo de marcha, lembrando os gritos do povo ao descer o Faubourg Saint-Antoine: “sejamos terríveis”. Tu, que tantas vezes fora movida pela vingança, sabes bem o que se passa aqui. Certa vez me disseste que o único motor que move sem ser movido é o desejo de desagravo. Se não me falha a memória, completaste em tom metafísico: “vamos deixar essa história para depois”. Augusto ignorava nossos debates sobre filosofia primeira, assim como desconhecia a natureza daquilo que o levara até ali. Sabia que algo o havia dirigido, e que se tratava de uma força infinita, imutável, inesgotável. Dessabia, entretanto, seus contornos porque não nos é dado conhecer o corpo de nossos desejos. Augusto era um móbil da vingança. Secretamente, ele queria nosso mal em idêntica medida ao seu, isto é, em doses cavalares de anti-depressivos que anestesiam os afetos. Será que sabemos o que é morrer de amor sem nada sentir? Será que estaríamos preparados para a leve brisa da perda que nos guilhotina a cabeça? Questões muito difíceis que prefiro deixar sem resposta. Porque o que importa é a rua. A rua Sagarana, de onde segundas travessias são impossíveis. 
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