Nada
acontecia, Augusto atravessava a rua. Não sentia nada, nada. Mas sentia
saudades, no plural, de ti. Ocorre que a falta que tu fazias não era afetiva, passional ou amorosa, senão de ordem espacial. Augusto se dava
conta de que o coração se embrulhava no lugar vazio do teu corpo ausente. Desapareceram os grandes continentes da vida a
dois: a sala de jantar, por exemplo.
Enganam-se, pensava ele, os que creem ser o espaço o infinito abstrato dos
físicos modernos. Vinha à sua mente, talvez enviada por um anjo, a expressão
decifrada "aquilo n'aonde que". Isso era o espaço. Tua barriga, digamos, fora o lugar de Marília, nome lindo. Marília nasceu morta. Estranho como as
palavras, pouco a pouco, nos trouxeram de volta a essa tristeza. Augusto atravessou a rua para que o mundo não se desfizesse.
Friday, June 16, 2017
Friday, April 21, 2017
Física - Parte II
A noite caiu enquanto Augusto atravessava a rua.
Nada de excepcional nesse fato. Afinal, pensou ele, tratava-se, em último caso,
de uma tecnicalidade legal. Quando é que termina a tarde e começa a noite? No
Brasil, às 18h anoitece. Ponto final. Se não vira bagunça. É preciso preservar
um mínimo de segurança jurídica. Augusto se dizia alguém que
prezava a objetividade. Era reconhecidamente, contudo, um sujeito dividido,
meio em cima do muro: uma pessoa, digamos, crepuscular. Daí a grande
dificuldade que encontrava naquele momento. Veja: às dezessete horas, cinquenta
e nove minutos e cinquenta e nove segundos, pisava ele no asfalto em direção ao
outro lado da rua Sagarana. Às dezoito horas, nós o vemos a meio caminho. E,
segundo seu próprio parâmetro - que, não vamos negar, já encontrou algum
respaldo jurisprudencial - anoitecera. Noitinha. Foi nesse instante que Augusto
se deu conta de que aquele instante poderia se dividir em inumeráveis outros
instantes cada vez menores. E que era dia e noite, dia-noite, noitedia. Lusco-fusco. Seu
critério, então, revelou-se problemático, inaplicável. Sem conseguir se decidir
se era dia ou noite e, aparentemente, sem saber a própria diferença entre noite e dia, Augusto continuou a atravessar a rua sem que nada de excepcional
acontecesse.
Friday, March 31, 2017
Física - Parte I
Augusto pensava em nós naquele dia em que atravessou
a rua sem que nada acontecesse. Um passo, outro passo. Das mil e uma noites que
passara ao teu lado - ou os 32 meses, a depender do seu estado de espírito -,
ele agora se lembrava muito pouco. Sobraram algumas imagens vagas, disformes,
multicoloridas; alguns instantâneos. É verdade que ele se perguntou se tudo
aquilo não havia sido um sonho. Não pelo caráter onírico ou fantástico de vossa relação, é claro, mas sim por aquela compressão total do tempo que se experimenta
entre a vigília e o despertar. Uma sesta que talvez tenha durado muito ou muito
pouco. Augusto te amou de verdade, não resta nenhuma dúvida. Amou, aliás,
sabendo que era amado. Gostava de transar contigo às sextas-feiras, quando vós
vos encontráveis. Aos domingos, menos: sentia-se tímido diante dos olhos
terríveis das segundas-feiras. Quando tu disseste que ia embora porque tinha me
encontrado, Augusto pensou que eu deveria gostar de transar aos domingos. Ou
outro dia da semana. Essa reflexão algo machista o ocupara durante meses; e o
ocupava, certamente, também nos instantes em que atravessou a rua sem que nada
acontecesse.
Wednesday, February 08, 2017
Tuesday, February 07, 2017
Mineração
O nome
que designa o lugar
que deve dar lugar
à destruição do lugar.
Origem aqui não só se busca,
senão se
escava
até verter em filões
uma fina camada mineral,
estria
paradoxal
de onde
emerges.
Como Métis, Minas,
deiforme
em palavra de comando:
Gerai, gerai, gerai.
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