Eis que o andar redime. O tenro ocaso que ora reflete o sangue das ruas é a mais aconchegante companhia nestes dias cinzentos: os dias sem-fim. A humidade imunda e a fuligem cerrada também são grandes companheiras. Caminhamos todos, lado a lado, numa perfeita simetria democrática em que cada um é obrigado a respeitar os demais; todos sabemos os limites de nossas liberdades. As gotículas enturvecidas pela poluição dos carros não se atrevem, por exemplo, a tomar o lugar da fuligem que entra por minhas narinas e atinge meu pulmão asmático. Quase uma república.
Entretanto, devo me manter firme. O andar redime, como já dizia. Entro cada vez mais em contato com a cidade e a cidade, como ser instintivo que é, começa a impregnar minha pele. Eu gosto muito disso tudo. "Mais uma dose de adrenalina, por favor - assim eu consigo me sentir um pouco mais morto". Maravilhoso! sinta o cheiro acre que emana destes boeiros. Sinta a inefabilidade dos caminhões e ambulâncias que percorrem cada ruela; sinta o Estado entrando nos guetos com o giroflex ligado e pronto para matar e matar; sinta o quão sirênicas são as luzes dos postes; sinta a inexistência tangível das estrelas. "Starless".
Não te desespera, amigo. O andar ainda redime.
"A natureza que se constitui na história humana - no ato de criação da sociedade humana - é a natureza real do homem; por isso a natureza, tal como se constitui através da indústria - ainda que sob uma forma alienada -, é a verdadeira natureza antropológica." Karl Marx, Der historiche Materialismus: Die Frühschriften.